segunda-feira, 24 de junho de 2013

Longe das ruas

Um resumo-análise da perspectiva de Fernando Henrique Cardoso sobre os rumos da sociedade brasileira pós-manifestações.
***
Li as declarações de Fernando Henrique Cardoso que saíram nos jornais e assisti à entrevista de domingo na televisão. Iniciou falando que os acontecimentos das últimas semanas são um "movimento social" e não um "movimento político". A proposta do programa era falar dessa sociedade em ebulição. Infelizmente, ele não falou como sociólogo. Ou quase não falou como sociólogo. Foi convidado sob essa insígnia, mas falou como um político ligado a uma estrutura partidária.

Ele e entrevistadores tangenciaram a falta de conhecimento da sociedade sobre decisões importantes para o país como a nova Lei dos Portos. Mas não se tratou verdadeiramente deste descolamento entre os poderes constituídos e a sociedade, da despolitização que resulta na manifestação em forma de panacéia.

Pelo contrário: exceto uma rápida menção à PEC 37, não se falou das "vozes das ruas". Aliás, interessante foi ver uma reportagem da Folha onde os jornalistas abordaram pessoas que carregavam cartazes contra o "PC 37". Uma jornalista perguntou: "você fala da PEC 37?". Uma mulher na Avenida Paulista, com aquele tom de quem sabe tudo, corrigiu a jornalista: "não, não, é o PC 37! É um negócio que, tipo, como vou te dizer? Dá privilégio aos poderosos, sabe?". Com um ativismo tão qualificado, não me espantará se daqui a uns dois, três meses, a votação do "PC 37" entre de novo na pauta de votações do Congresso.

Mas voltando às falas de Fernando Henrique. Concentraram-se nas velhas diferenças entre PT e PSDB, que ambos os partidos tem tocado na última década, os dois com um certo distanciamento da sociedade no que diz respeito ao anseio de participar dos processos decisórios, tão levantado nos últimos dias. 

Elogiou as medidas anticíclicas do governo Lula em 2008, mas criticou a persistência dos estímulos ao consumo. O problema do caos urbano deve-se ao fato de que as pessoas passaram a comprar mais carros. Resposta precária que apenas demonstra que, de sua parte, não há disposição de superar o Fla X Flu de tucanos e petistas que ele próprio critica. 

Falou que, na sua visão, a tentativa de estimular a industrialização do atual governo é equivocada, pois concentra-se em subsídios e financiamentos que favorecem certos setores da indústria. O equívoco residiria no fato de que as cadeias de produção são transnacionais e que, portanto, esse tipo de estímulo padece de um protecionismo atrasado. O que ele propõe em substituição é algo muito igual à nada nova teoria do desenvolvimento dependente: as cadeias transnacionais automaticamente promoveriam o crescimento do país.

Elogiou a qualidade das universidades privadas. Disse que antigamente a qualidade das universidades privadas era inferior à das públicas e que hoje há uma maior equiparação. (Interpretações livres. Me abstenho).

Criticou a imagem da atual presidente de uma pessoa dura, que pune seus subordinados. Disse que o Brasil - e afirmou que vem trabalhando isso nas reuniões de seu partido - precisa encontrar algo que traduza uma imagem que o povo quer ver como Obama fez valer com o seu "Yes, We Can". Para Fernando Henrique (fiz força para não rir, quero manter a seriedade do texto), o que colaria no Brasil seria um "Yes, We Care". Mas isso esbarraria no problema da tradução, que em português precisaria de uma frase longa demais para passar a mesma ideia: "Sim, nós cuidamos de você". Disse que o que o povo brasileiro quer é carinho. É o problema de alguém que fala para uma audiência cativa
(como era o caso da bancada de entrevistadores): qualquer diálogo crítico teria apontado para o presidente a incoerência dessa visão que ele tem sobre os anseios do que o brasileiro deseja com o que ele havia mencionado anteriormente: que o brasileiro está cansado de puro marketing, de discursos vazios.

Defendeu a posição - já notória - da legalização da maconha como via para mudar a política de segurança, reduzir a corrupção e tratar os usuários como dependentes químicos. Afirmou que se surpreende quando jovens desavisados o abordam achando que ele é um libertário. Contou, arrematando a anedota, que até o General conservador que governa a Guatemala, telefonou para ele pedindo esclarecimentos sobre a legalização da maconha porque não estaria conseguindo vencer a guerra do tráfico em seu país (respirei aliviado!).

O mote da entrevista não era o passado, não eram seus oito anos de governo. Mas quando mencionaram pontos críticos de seu governo, ele resumiu dizendo que avançou no que podia, que o resto foi barrado pelo atraso do Congresso e pelo corporativismo de segmentos específicos (exemplo: segurança pública). Mas como o tom da conversa era sobre o governo federal e dentro dessa visão imperial da presidência da República, praticamente nada se falou, criticou, analisou, apontou para mudanças em relação aos sérios problemas dos Legislativos (cada vez maiores e que tenderão a crescer na medida em que toda a discussão política se concentrar em demolir a figura de Dilma Rousseff). Não menos importante: quanto a posição de seu governo na crise do racionamento de energia, Fernando Henrique fez um auto-elogio. Disse que teve a coragem de convocar uma rede nacional e falar com sinceridade à população.

Criticou a atual gestão da Petrobrás. Defende que a atuação da empresa seja mais aberta aos mecanismos de mercado.

Falou o que já sabemos sobre o Plano Real, sobre a inflação. Não falou sobre a taxa básica de juros, mas criticou a atual administração do Banco Central. Criticou a ideia do atual governo de que o próprio governo tenha um grande grau de controle sobre o crescimento da economia. Avaliou que a atual visão sobre investimentos é precária.

Resumiu sua avaliação sobre o atual momento do país com a seguinte expressão: o cristal quebrou e é bom que isso tenha acontecido. 

Não consegui ver a conexão entre toda essa análise e a afirmação inicial de que a sociedade brasileira está passando por um processo similar ao Maio de 1968.

Não houve nenhuma preocupação em questionar seriamente as transformações da sociedade brasileira, muito menos a falta de canais de participação, de engajamento das instituições com os novos anseios da sociedade. Menciona-se estes dois últimos elementos como estopim, como o "fio desencapado" do curto-circuíto, mas a discussão não se renova em relação às tradicionais divergências entre PT e PSDB (com tudo o que elas implicam, inclusive na relação com as forças do "atraso").

E, como eu já disse antes, há uma total indiferença em relação às expressões truculentas e autoritárias que vieram à tona na panacéia das manifestações. Fala-se em vândalos minoritários, em rompantes naturais da juventude. Para um ex-presidente que também é sociólogo contemporâneo do Maio de 1968, é lamentável tal percepção. Mas a pauta que se pretende colocar como se fosse a etapa natural do pós-manifestações é a construção de uma figura à altura da sucessão presidencial. E nisso, Fernando Henrique está, de fato, empenhado.

Por que dar atenção a tudo isso? Porque Fernando Henrique Cardoso é uma referência para muitos. É uma referência para a classe política: são raras as lideranças políticas que se dão ao luxo de não ouvirem o que ele tem a dizer sobre os problemas do país. É uma referência para os intelectuais: goste-se ou não dele, suas palavras são recebidas com uma certa reverência pela academia. É uma referência para alguns setores da sociedade, embora qualquer petista possa querer ridicularizar essa minha afirmação. É uma referência para setores da economia (partes do empresariado e do setor financeiro) para os quais ele é um parâmetro do que seu partido pensa em termos de política econômica. 

Fernando Henrique é o que há de mais avançado em seu partido. Presidente de honra do PSDB, ele parece desconhecer que o tal "atraso" não reside apenas nos partidos pequenos: o projeto da "cura gay" é de autoria de um líder do PSDB de Goiás (embora haja a tendência de tributar a conta apenas na fatura de Marco Feliciano do PSC). Ele reconhece que está distante do dia a dia de seu partido. Talvez seja por isso que sua fala não pareça coincidir com o partido que existe na realidade. Mas este privilégio não é tucano, vale lembrar. 

Para alguém que tem sido convocado a dar sua palavra sobre o atual momento político do país, deixou a desejar. Parece ter passado bem longe das contradições que tomaram conta das ruas brasileiras nas últimas semanas e bem perto da discussão tradicional sobre sucessão presidencial. Mas agora foi dada a largada para aqueles que pretendem falar em nome do coro dos descontentes. Entretanto, a multidão permanece indecifrada. A fala do ex-presidente e sociólogo dirige-se a uma audiência tradicional: já politizada. Ele próprio reconhece que não gostaria de estar na  pele da  presidenta da República: ela tem como imperativo dirigir-se a todos os brasileiros.

Um comentário: